quinta-feira, 1 de março de 2007

Razão irracional?


Nosso colunista vê falhas no discurso de cientistas ateus como Richard Dawkins e revela: “o mistério do desconhecido me inspira por ser real”


O leitor de Galileu viu, na reportagem de capa da edição de janeiro, a nova face da antiga guerra entre ciência e religião: os cientistas, ao menos alguns deles, resolveram contra-atacar e criticar severamente a religião. Mais do que criticar, ridicularizar. Segundo Richard Dawkins, o famoso divulgador de ciência inglês, autor, entre outros, do celebrado "O Gene Egoísta", a religião é uma grande ilusão, perpetrada por milênios. Deus não existe, milagres não existem, o sobrenatural não existe. Em pleno início do terceiro milênio, é mais do que óbvio que a religião é desnecessária, coisa do passado.

Como não podia deixar de ser, as afirmações de Dawkins e outros (por exemplo, Sam Harris e Daniel Dennett) ofendem muita gente. E deveriam. Me parece que Dawkins queria exatamente isso, polemizar. Bem, ele conseguiu. Seu livro "The God Delusion" ("A Desilusão Deus") está na lista dos mais vendidos nos EUA e ele apareceu na capa da "Time", uma das revistas mais lidas do mundo. As pessoas estão prestando atenção. Mas será que o que está sendo dito faz sentido? E, se faz, será que está sendo dito do modo certo?

Não há dúvida de que a ciência, na sua descrição material do mundo, é incompatível com a existência de uma realidade sobrenatural, paralela. A ciência lida apenas com o que é mensurável, com fenômenos quantitativamente verificáveis. Não existe espaço para depoimentos pessoais, visões ou alucinações de caráter religioso. Portanto, milagres, fantasmas ou outras entidades que não obedecem às leis naturais não entram no discurso científico. É simples: se algo ocorre e é visto, ou seja, se interage com alguém ou com um detector, passa a fazer parte da realidade. Como tal, deve ser compreensível como um fenômeno natural. Para a ciência, o sobrenatural não existe.

É fácil criticar as premissas da religião, ao menos ao nível mais básico. Se você acredita em Deus, não diga a seu filho que fantasmas não existem. E qual dos tantos deuses propostos pelas religiões do mundo é o Deus de verdade? Exemplos não faltam. Porém o argumento central de Dawkins é, na minha opinião, furado. Ele usa a razão para justificar o irracional. Segundo ele, Deus, sendo a entidade mais perfeita que existe, deveria ser o produto final da evolução, e não o seu precursor: se foram necessários 3,5 bilhões de anos até que a vida conseguisse fabricar seres inteligentes, demoraria muito mais para uma criatura perfeita surgir. O argumento falha por usar a teoria da evolução fora de seu regime de validade. Deus não obedece às leis de causa e efeito que regem o Universo material. Se a intenção de Dawkins era convencer pessoas incertas com relação à religião a mudarem de idéia, não acho que esse seja o caminho certo.

Mas, então, o que fazer? Primeiro, definir o público-alvo. Os religiosos ortodoxos jamais mudarão de idéia. Porém milhões de pessoas vão a igrejas e sinagogas mais por tradição do que por convicção. Vão não por acreditar que a hóstia é a carne de Cristo ou que os Dez Mandamentos vieram de Deus, mas porque seus avôs e pais também vão. Vão para pertencer a um grupo, para fazer parte de uma tradição cultural. Vão para se proteger do mundo, da dor, da perda. A ciência não tem o direito nem a função de interferir na fé das pessoas. O que deve ser feito é esclarecer, educar o público para evitar confusões. O erro da ciência é supor que tudo é razão. Já a religião erra quando quer ser ciência.

Muitos cientistas são religiosos por verem na natureza a obra de Deus. Não é o meu caso. A beleza que vejo na natureza não atribuo a Deus, mas à própria natureza. O mistério do desconhecido me inspira por ser real. E o mais fascinante é que, através da ciência, podemos decifrar ao menos parte dele.