terça-feira, 1 de julho de 2008

A Mágica da Existência

Na Grecia Antiga, mesmo após o aparecimento da filosofia e de pensadores como Platão e Aristóteles, a superstição ainda reinava suprema. As pessoas se fiavam completamente nas histórias míticas dos deuses do Olimpo, Zeus e sua corte, e nas previsões do Oráculo de Delfos. A astrologia também era muito importante, servindo, aliás, de inspiração aos astrônomos, que procuravam prever os movimentos dos astros celestes com precisão cada vez maior. Afinal, quanto mais preciso o seu mapa astral, maiores as "chances" de estar certo.

Esse tipo de apego ao sobrenatural
levava muita gente ao desespero. Sem poder controlar as fontes supernaturais de sua fé, as pessoas se entregavam a rituais que buscavam apaziguar os deuses, pedir favores, perdão ou vingança. Feito as oferendas que via na esquina da rua em que cresci no Rio de Janeiro, com a galinha preta junto à garrafa de cachaça e os charutos fumados pela metade. Mudaram os deuses, mas não o medo causado pela fé no sobrenaraI ou o impulso de pedir algo a entidades que não fazem parte da nossa realidade.

O poeta romano Lucrécio, que viveu entre 96 e 55 a. c. sabia bem das causas e consequências dessa fé no intangível. Em seu poema "Da Natureza das Coisas", escreveu: "Nem mesmo o brilho do Sol, a radiação que sustenta o dia, pode dispersar o terror que reside na mente das pessoas. Apenas a compreensão das várias manifestações naturais e de seus mecanismos internos têm o poder de derrotar esse medo".

Acho absolutamente fascinante que alguém que viveu há quase dois mil anos tivesse essa clareza de raciocínio no que tange ao poder da razão como antídoto contra o medo que subjuga os que se entregam ao desconhecido. Macumba dá medo. O Inferno também. Lucrécio enfatiza a compreensão dos fenômenos naturais - ou daquilo que hoje chamamos de ciência - como nossa arma contra o terror causado pela fé em uma realidade sobrenatural nem sempre benévola.

Apesar de antigo, o debate se renova constantemente. Hoje, após tantas descobertas científicas, ainda vemos grande parte da população confusa no que diz respeito à Teoria da Evolução de Darwin, à física quântica (que estuda o comportamento dos átomos e de seus constituintes) ou à Teoria da Relatividade e o modelo do Big Bang. Me parece paradoxal
que pessoas usem iPods, navegadores GPS, impressoras a laser, carros com computadores, TVs digitais e DVDs ainda sem saber que essas invenções são produto da física atômica e da relatividade. Mais paradoxal ainda é que vemos nosso comportamento social, o mal que somos capazes de fazer uns aos outros, e ainda nos achamos animais superiores, "inteligentes". Vamos à Lua, enviamos sondas até Marte, desenvolvemos curas para as mais variadas doenças, mas somos incapazes de entender por que nos matamos em guerras ou nas ruas. Entendemos hoje que o cérebro humano é um conjunto de neurônios regados por uma série de hormônios e outras substâncias químicas, criamos drogas para alterar nossas sensações e estados emocionais, discutimos até as origens neurocognitivas da fé e da felicidade, mas continuamos orando para deuses invisíveis que se recusam a falar conosco. Estamos em 2008, mas ainda continuamos a matar pobres galinhas pretas para pô-Ias nas encruzilhadas do nosso vasto País.

As palavras de Lucrécio ressoam hoje tão verdadeiras quanto há dois milênios. Sim, somos seres espirituais e precisamos nos apegar a algo maior do que nós para nos ajudar nos momentos mais difíceis da vida. Mas essa espiritualidade não deveria excluir a compreensão da realidade em que vivemos. Ao contrário, deveria incluí-Ia. Está na hora de entendermos que a mágica da existência não está em ser inexplicável, sobrenatural. A mágica da existência está justamente em ser explicável, em ser acessível às nossas indagações. A mágica da existência está justamente em ela ser humana.